sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Clássicos da Cinemateca - Ondas do Destino

Todo mundo tem alguma coisa em que é bom. Eu sempre fui burra, mas eu sou boa nisso.

Achamos que ele ficará paralisado. Mas ele viverá!
“Um filme deve ser uma pedra no sapato!”, é o que afirmou, certa vez, o polêmico cineasta dinamarquês Lars von Trier. Essa frase de efeito ilustra perfeitamente a filmografia desseenfant terrible do cinema contemporâneo. Trier, filme após filme, desafia o espectador, brinca com suas emoções, crenças, o faz sofrer. Sem medo, ele explora tudo o que há de vil, torpe e obscuro no ser humano. A nobreza, a pureza e a inocência também estão presentes em suas obras nas figuras de heroínas de coração puro como Bess (Ondas do Destino), Grace (Dogville) e Selma (Dançando no Escuro). Figuras sacrificiais. Os filmes de Lars von Trier parecem combinar tortura psicológica e um brilhante exercício de estilo. Gênio contestado por uns, aclamado por outros, Lars von Trier é um cineasta profundamente visceral, pessimista e ousado. Único. Ninguém sai incólume de seus filmes. Um imenso desconforto nos acompanha do início ao fim e, por vezes, mesmo após a projeção.
Lars von Trier foi, ao lado do também incrível Thomas Vinterberg,  um dos fundadores do Dogma 95, movimento cinematográfico vanguardista, que pregava um certo “voto de castidade”, ou seja, o cumprimento de certas regras na prática do cinema. O movimento procurava por em primeiro plano a história, as performances e os temas, banindo o uso de efeitos especiais e o abuso dos recursos tecnológicos. Os Idiotas (1998), filme cult do diretor, é tido como um dos principais exemplares desse movimento. Outras grandes realizações do diretor são Ondas do Destino (do qual falaremos a seguir), Dogville (famoso por ter sido filmado em um palco e com um cenário nada convencional que consistia em marcas no chão e alguns objetos), Dançando no Escuro (musical premiado com a Palma de Ouro em Cannes e brilhantemente estrelado pela cantora Björk), Anticristo (um dos filmes mais polêmicos e radicais do diretor, um “filme de terror freudiano”) e Melancolia (seu último projeto a sair no cinema, altamente existencialista).
Lars von Trier costuma trabalhar em torno de temas e trilogias. Assim ele criou a trilogia “do coração de ouro”, composta por Dançando no EscuroOs Idiotas e Ondas do Destino. A trilogia dos Estados Unidos (terra das oportunidades), composta por DogvilleManderlay e o ainda não produzido Wasington. Da sua mais recente trilogia, a da Depressão, fazem parte os filmes AnticristoMelancolia e o ainda inédito Ninfomaníaca. Nada menos do que nove filmes do diretor integraram a seleção oficial de Cannes desde 1984. O cineasta é também famoso por querer tirar o máximo de suas protagonistas, em um método de direção intenso que costuma levar os atores à exaustão. Björk, após trabalhar com ele, chegou a afirmar que não faria cinema novamente. Nicole Kidman também se mostrou “traumatizada” depois de trabalhar com Trier e não participou da sequência de Dogville. Sádico ou não, o diretor consegue tirar o melhor de seus atores e seus filmes contêm performances impressionantes. Não é por acaso que três atrizes dirigidas por ele ganharam  prêmios em Cannes (Björk, Charlotte Gainsbourg e Kirsten Dunst). Já Emily Watson concorreu ao Oscar de Melhor Atriz por Ondas do Destino. Trier foi indicado ao Oscar apenas uma vez, na categoria de Melhor Canção (!) por Dançando no Escuro.
Lars von Trier é também uma figura curiosa em outros aspectos. Além de ter crises de depressão, o cineasta é também um assumido “medroso”. Ele tem diversas fobias, como medo de voar (ele nunca foi aos Estados Unidos, por exemplo). Pelo visto, ele também tem poucas “aptidões sociais”. Durante uma entrevista coletiva no Festival de Cannes de 2011, o diretor fez uma brincadeira infeliz sobre Hitler que gerou grande repercussão. A partir de então, o diretor tornou-se persona non grata no festival. Um detalhe interessante de sua biografia é que sua mãe assumiu, no leito de morte, que o verdadeiro pai do cineasta era um músico e que ela engravidou desse homem para que o filho tivesse “genes artísticos”. 

Nenhum de vocês tem o direito de mandar Bess para o inferno!
Ondas do Destino é um dos filmes mais interessantes e tocantes do cineasta dinamarquês. O longa-metragem tem uma dimensão épica, tanto em sua estrutura, quanto em sua duração. Dividido em nove partes (sete capítulos, um prólogo e um epílogo), Ondas do Destino é ambientado nos anos 70, na Escócia. Grande parte da ação se passa num pequeno vilarejo dominado por cristãos conservadores e fanáticos. De certa forma, o comportamento dos habitantes desse lugarejo é controlado pelos beatos, os anciões do lugar. A vida, para eles, não é feita para a diversão, mas para servir a Deus. Além disso, a finalidade do sexo é unicamente a procriação e as mulheres ocupam um lugar de submissão perante os homens, não podendo nem mesmo falar na igreja. Trata-se também de uma comunidade fechada em que estrangeiros não são bem-vindos. A ameaça do inferno e a esperança da salvação pairam sobre a existência dessas pessoas, cujas vidas são regidas pela religião.
Bess é um fruto dessa comunidade, uma jovem simplória, de bom coração. Ela passou por uma grave crise quando o irmão morreu e, desde então, não foi a mesma. Quando a moça se apaixona por Jan, não-crente e operário em uma refinaria, a comunidade entra em choque. Apesar da desaprovação da maioria, Bess se casa. A moça descobre, assim, as delícias do casamento e do sexo e experimenta uma felicidade plena. Quando precisa separar-se do marido, ela entra em desespero e, consequentemente, em depressão. Ficar longe do amado é a coisa mais difícil para ela. Certo dia, uma tragédia acontece em sua vida. Após um grave acidente, Jan fica paralisado do pescoço para baixo. Em estado crítico, ele pede para que Bess faça amor com outro homem. Movida por uma fé incalculável, Bess passa a acreditar que de alguma forma seu sacrifício possa curar o marido. A medida em que a condição de Jan piora, ela vai tomando atitudes mais desesperadoras e grandiosas. Ao final, o filme toma uma dimensão cósmica comovente.

Eu não faço amor com eles, eu faço amor com Jan e o salvo da morte.
Um dos aspectos mais importantes de Ondas do Destino é a relação da protagonista com Deus, com a espiritualidade e com a fé. Lars von Trier mantém durante grande parte do filme uma certa ambiguidade: Bess é de fato um instrumento de salvação, uma pessoa iluminada por Deus, nutrindo com Ele uma especial forma de comunicação? Ou ela sofre de algum tipo de distúrbio, loucura? A que podemos atribuir seus impulsos autodestrutivos? Na parte final do filme, o cineasta parece optar por uma das interpretações. Louca ou profeta, a figura de Bess assemelha-se certamente a personagens bíblicos como Maria Madalena e o próprio Jesus Cristo. Afinal de contas, ela também atravessa um calvário e se sacrifica pelo bem de um pecador. Ao desafiar a lei imposta pela comunidade em que vive, Bess se transforma em uma pária e passa a ser perseguida e discriminada pelos seus. Há também nessa personagem um pouco da mártir católica Joana d’Arc. A maneira com a qual Lars von Trier filma o rosto expressivo de Emily Watson nos remete ao que Carl Theodor Dreyer fez com Maria Falconetti, no clássico A Paixão de Joana d’Arc (1928). Trier é, por sinal, um grande admirador de Dreyer, que também era dinarmaquês.
Impresssiona também no filme o uso constante da câmera na mão, o que confere um tom de documentário ao filme, além de gerar certo desconforto e apreensão no espectador. A colaboração do diretor com Robby Muller, diretor de fotografia, é extremamente bem-sucedida. Ondas do Destino não só provoca fortes emoções no espectador, como também pode gerar um desconforto físico, náuseas como se estivéssemos em mar aberto (o título ganha, assim, mais uma dimensão).

Deixe-me morrer! Eu sou mau na cabeça!
É difícil falar de Ondas do Destino, sem louvar a interpretação de Emily Watson. A performance da atriz inglesa pode ser comparada a uma força da natureza, a um soco no estômago. Watson confere uma imensa humanidade, vulnerabilidade e, principalmente, veracidade a uma personagem que poderia facilmente soar ridícula ou inverossímil. A câmera parece nutrir um caso de amor com o rosto da atriz e o espectador inevitavelmente se apaixona por Bess. O elenco ainda conta com os excelentes Stellan Skarsgård e Katrin Cartlidge.
Ondas do Destino fala de amor e de fé de uma maneira nada convencional. Trata-se de uma jornada emocional única, a que somente um diretor destemido e ousado como Lars von Trier poderia nos levar. 

Eu te amo não importa o que está na sua cabeça.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Clássicos da Cinemateca - A Noviça Rebelde

Raindrops on roses and whiskers on kittens 
Bright copper kettles and warm woolen mittens 
Brown paper packages tied up with strings 
These are a few of my favourite things 

The hills are alive with the sound of music / With songs they have sung for a thousand years / The hills fill my heart with the sound of music
Com o passar do tempo, muitas pessoas passaram a se referir à Noviça Rebelde como sendo um filme bobo, açucarado, fora de moda, cafona. Tais adjetivos escondem, por vezes, uma resistência ao gênero musical, principalmente àquele praticado na Era de Ouro de Hollywood. Quem não aprecia o gênero dificilmente dará valor a este clássico, que é, sem dúvida, um de seus exemplares mais bem sucedidos. É compreensível que certas pessoas torçam o nariz ao ver uma freira correr pelas colinas austríacas de braços abertos cantando a felicidade e o poder da música. Afinal, estamos acostumados a enxergar o mundo por uma ótica menos idealizada e mais pessimista, fruto de todos os problemas que nos rondam.
A Noviça Rebelde, ao contrário, se assemelha a um conto de fadas e é uma celebração otimista da vida, do amor, da família e, principalmente, da música. Alguns cinéfilos, hoje em dia, chegam a classificar este filme como sendo um guilty pleasure, como se fosse realmente um pecado gostar do musical. É comum que alguns filmes, principalmente os clássicos, se cristalizem na memória universal e que tenhamos ideias preconcebidas sobre eles, sem nos preocuparmos em (re)vê-los. Todos esses preconceitos e análises apressadas parecem camuflar o fato de que A Noviça Rebelde é um grande filme e merece a chance de ser redescoberto.

Doe, a deer, a female deer / Ray, a drop of golden sun / Me, a name I call myself / 
Far, a longer way to run / Sew, a needle pulling thread /  La, a note to follow So /  Tea, I drink with jam and bread / That will bring us back to Do,Do Do Do
A Noviça Rebelde foi um imenso sucesso de público, liderando o box office de 1965 e desbancando o recorde de bilheteria que pertencia, até então, a E o Vento levou (1939). O sucesso comercial foi tamanho, que dizem ser este o filme responsável por salvar o estúdio Fox, após o desastre financeiro que foi o caríssimo Cleópatra (1963). O musical é um dos poucos filmes a liderar a bilheteria do ano de seu lançamento e ganhar o Oscar de Melhor Filme (feito realizado, por exemplo, por Titanic e O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei). Por falar em Oscar, A Noviça Rebelde foi indicado a dez estatuetas, tendo levado cinco (Filme, Diretor, Edição de Som, Montagem e Trilha Sonora). A recepção da crítica foi mista. Já naquela época, a trama e músicas açucaradas incomodavam alguns críticos, como Pauline Kael, que foi uma das mais ferrenhas detratoras do filme. Outros críticos, em contrapartida, aclamaram as incontestáveis qualidades técnicas e a trama envolvente do musical.

When the dog bites, when the bee stings / When I'm feeling sad / I simply remember my favourite things / And then I don't feel so bad
Muitos não sabem, mas a história do filme é baseada em eventos reais. O filme de 1965 é uma adaptação do musical de mesmo nome produzido na Broadway em 1959. A peça, por sua vez, foi baseada no livro de memórias de Maria Augusta von Trapp (que no filme é interpretada por Julie Andrews) e em sua adaptação cinematográfica realizada na Alemanha em 1956, Die Trapp-Familie. Em 1958, foi lançada sua sequência Die Trapp-Familie in Amerika(1958). A Noviça Rebelde conta a história de Maria, uma jovem noviça que é chamada para cuidar dos sete filhos de um rígido capitão austríaco, Georg von Trapp, por quem acaba se apaixonando. Apesar de ser baseado em um caso verídico, o filme possui diversas discrepâncias com relação ao que de fato ocorreu. Obviamente, muito no filme foi romantizado. Por exemplo, em suas memórias, Maria assume que não estava apaixonada por Georg quando se casou com ele. Ela também não foi contratada para cuidar de todas as crianças, mas apenas da caçula, que doente, precisava de lições em casa.
Outras curiosidades: a entrada da família no ramo musical deveu-se sobretudo à precária situação financeira de Georg após investimentos desastrosos. A casa onde morava a família era muito mais modesta do que o palacete retratado no filme. A maioria dos nomes das crianças foram alterados para o filme, assim como certas datas. O personagem de Max Detweiler é inteiramente ficcional. Outra discrepância apresentada no musical diz respeito ao temperamento de Georg, mostrado como um homem extremamente severo, distante e sem senso de humor. Na realidade, o capitão era conhecido por ser carinhoso e bastante presente na vida das crianças. Segundo o depoimento de uma das filhas do capitão, era, na verdade, a madrasta Maria que tinha o temperamento mais difícil. A família von Trapp não teve nenhum controle sobre a maneira como eram representados no cinema, uma vez que haviam vendido os direitos da história para um produtor alemão nos anos 50. Este, por sua vez, os vendeu para Hollywood.

Edelweiss, Edelweiss / Every morning you greet me / Small and white, clean and bright / You look happy to meet me
A escolha do diretor de A Noviça Rebelde é um epopeia a parte. Muitos diretores foram sondados e convidados pelos produtores Darryl e Richard D. Zanuck para assumir o projeto (dentre eles, Robert Wise) e todos disseram "não". William Wyler, grande nome do cinema clássico norte-americano, finalmente aceitou a tarefa e começou a escolher locações e a modelar o script. No entanto, o diretor acabou  por sentir-se inadequado para dirigir o filme, ainda mais que seu coração estava em outro projeto, a adaptação do romance O Colecionador, que veio a se tornar um filme cult. Wyler foi liberado pelos produtores e Robert Wise aceitou substituir o colega.
Robert Wise foi, certamente, um dos diretores mais versáteis de Hollywood. Ele é geralmente conhecido pelos dois musicais que dirigiu, Amor Sublime Amor e A Noviça Rebelde, seus filmes mais populares e famosos, pelos quais ganhou dois Oscars de diretor. No entanto, ele não era nenhum especialista no gênero. Alguns críticos tendem a considerar que o seu melhor filme foi, na verdade, O Dia em que Terra Parou (1951), tido como uma obra-prima de ficção científica e um dos filmes mais influentes do gênero. Wise também dirigiu os ótimos Jornada das Estrelas: O Filme (1979) e o filme de guerra O Canhoneiro do Yang-Tsé (1966). Wise chegou a ser considerado um diretor menos autoral por se submeter às vontades do estúdio e imprimir pouco de seu estilo às  suas obras. Novas críticas, no entanto, valorizam o profissionalismo, a habilidade e o preciosismo do diretor, que soube lidar com os mais diferentes gêneros e orçamentos. 

You are sixteen going on seventeen / Baby, it's time to think / Better beware, be canny and careful / Baby, you're on the brink
A Noviça Rebelde é um testemunho do talento de Wise, que cria um filme cativante, pulsante, combinando brilhantemente drama, humor, romance e até mesmo sequências de ação. Além de tudo, nunca a paisagem austríaca apareceu tão bela no cinema (com o auxílio, claro, da excelente fotografia de Ted D. McCord). A grandiosa sequência de abertura do musical é certamente um dos momentos mais célebres do cinema. Extremamente difícil de ser realizada, a sequência foi filmada com a ajuda de um helicóptero. Segundo Julie Andrews, uma das maiores dificuldades durante as filmagens era se manter de pé devido a poderosa corrente de ar gerada pelo helicóptero.
O roteiro de Ernest Lehman lida bem com a grandiosidade da história, sabendo dosar o aspecto histórico do filme (a ascenção do nazismo como pano de fundo) e a história de amor dos protagonistas. O coração do filme é, no entanto, sua trilha sonora, composta pelas belíssimas canções de  Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II: "Edelweiss", "My Favorite Things", "Climb Ev'ry Mountain", "Do-Re-Mi", "Sixteen Going on Seventeen", "The Sound of Music”, entre outras músicas que grudam na cabeça. Obviamente, essas músicas não são as mesmas que a verdadeira família von Trapp cantava em suas apresentações.
O grande elenco do filme é comandado pela incomparável Julie Andrews (indicada ao Oscar), com seu ótimo timing cômico, sua jovialidade e sua belíssima voz. O elenco ainda conta com os excelentes Christopher Plummer (que é dublado nos números musicais por  Bill Lee), Peggy Wood (indicada ao Oscar), Eleonor Parker, Charmian Carr e um grupo adorável de atores mirins.
Apesar de ser um clássico amado por diversas gerações, A Noviça Rebelde, é, hoje em dia, um filme pouco assistido, principalmente, pelos jovens cinéfilos. É fácil dizer que o filme envelheceu mal sem de fato lhe dar uma chance. Na realidade, o musical é um prato cheio para quem ama cinema e, ainda hoje, pode arrebetar muitos corações. O American Film Institute listou o filme como sendo um dos 100 melhores de todos os tempos (40ª posição) e um dos melhores musicais (4ª posição).

So long, farewell, auf wiedersehen, good night / I hate to go and leave this pretty sight / So long, farewell, auf wiedersehen, adieu / Adieu, adieu, to yieu and yieu and yieu